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VICTORA_Antropologia e Etica

Date post: 18-Oct-2015
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  • ANTROPOLOGIA E TICA:O debate atual no Brasil

  • Copyright 2004 by Ceres Vctora, Ruben George Oliven, Maria EuniceMaciel e Ari Pedro Oro (organizadores)

    Direitos desta edio reservado EdUFF Editora da Universidade FederalFluminense - Rua Miguel de Frias, 9 anexo sobreloja Icara Niteri,CEP 24220-000 RJ Brasil Tel.: (21) 2629-5287 Fax: (21) 2629-5288http://server.propp.uff.br/eduff - E-mail: [email protected]

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizaoexpressa da Editora.

    Normalizao: Ana GawryszewskiEdio de texto e reviso: Rozely Campello BarrocoCapa: Jos Luiz Stalleiken MartinsProjeto grfico, diagramao e superviso grfica: Kthia M. P. Macedo

    Catalogao-na-fonte

    A306 Antropologia e tica. O debate atual no Brasil/Ceres Vctora,Ruben George Oliven, Maria Eunice Maciel e Ari Pedro Oro

    (organizadores). Niteri: EdUFF, 2004.207 p. 21cm.Inclui bibliografiasISBN 85-2280387-0I. Antropologia. II. tica. III. Debates no Brasil

    CDD 636

    Apoio: Fundao Ford

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor: Ccero Mauro Fialho Rodrigues

    Vice-Reitor: Antnio Jos dos Santos PeanhaPr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao: Sidney Luiz de Matos Mello

    Diretora da EdUFF: Laura Graziela GomesDiretor da Diviso de Editorao e Produo: Ricardo Borges

    Chefe da Diviso de Desenvolvimento e Mercado: Kalil Herculano Simo

    Comisso EditorialPresidente: Laura Graziela Gomes

    Antonio Delfino JniorElizabeth Glestal ArajoGislio Cerqueira Filho

    Hildete Pereira de Melo Hermes de ArajoLuiz Carlos Rolim

    Maringela Rios de OliveiraSrgio Carmona de So Clemente

    Vnia Glria Silami Lopes

  • Associao Brasileira de Antropologia

    Editora da Universidade Federal FluminenseNiteri 2004

    Ceres VctoraRuben George OlivenMaria Eunice Maciel

    Ari Pedro Oro(organizadores)

    ANTROPOLOGIA E TICA:O debate atual no Brasil

  • ndice

    PrefcioGustavo Lins Ribeiro ........................................................ 9

    IntroduoCeres Vctora, Ruben George Oliven,Maria Eunice Maciel e Ari Pedro Oro................................ 13

    Parte I TICA E ANTROPOLOGIA: ASPECTOSGERAIS ......................................................... 19

    O mal-estar da tica na antropologia prticaRoberto Cardoso de Oliveira ............................................ 21

    Pesquisa em versus Pesquisas com seres humanosLus Roberto Cardoso de Oliveira..................................... 33

    tica e as novas perspectivas da pesquisa antropolgicaGuita Grin Debert ........................................................... 45

    Parte II TICA, ANTROPOLOGIAE MULTIDISCIPLINARIDADE.................... 55

    Antropologia e Sade: consideraes ticas e conciliaomultidisciplinarMaria Luiza Heilborn ....................................................... 57

    Questes ticas da pesquisa antropolgica na interlocuocom o campo jurdicoIlka Boaventura Leite ....................................................... 65

    ticas e identidades profissionais em uma perspectivacomparadaRoberto Kant de Lima ..................................................... 73

    tica e imagem em Antropologia: algumas consideraesMarilda Batista ................................................................. 79

    tica de pesquisa em equipe multidisciplinarCeres Vctora .................................................................... 83

  • Parte III TICA E ANTROPOLOGIA INDGENA . 89A difcil questo do consentimento informadoAlcida Rita Ramos ............................................................ 91

    tica e pesquisa de campoSlvio Coelho dos Santos................................................... 97

    Uma tentativa de reverso da tutela (e no de sua superao)Joo Pacheco de Oliveira .................................................. 105

    tica e cincia: comisses de tica em pesquisa cientficaVilma Figueiredo .............................................................. 113

    Os antroplogos e a leiMrcio Santilli .................................................................. 119

    Parte IV TICA E ANTROPOLOGIA DA SADE ... 123tica de pesquisa e correo poltica em AntropologiaLuiz Fernando Dias Duarte .............................................. 125

    As implicaes ticas da pesquisa antropolgica:uma reflexo a partir do caso da AidsDaniela Knauth ................................................................ 131

    A imagem e a tica na encruzilhada das cinciasCarlos Caroso................................................................... 137

    A tica da comunicao em sade: a escolha polticade diferentes linguagens para compreenso e aoRussel Parry Scott ............................................................. 151

    tica e pesquisa em AntropologiaJos Roberto Goldim ....................................................... 163

    Sobre os autores .......................................................... 169

    Anexos ............................................................................ 173Associao Brasileira de Antropologia (ABA),Cdigo de tica do Antroplogo. ..................................... 173

    Lei no 6.001, de 19 de dezembro de 1973. ....................... 175

  • Ministrio da Sade / Conselho Nacional de Sade -Resoluo no 196, de 10 de outubro de 1996. .................. 186

    Ministrio da Sade / Conselho Nacional de Sade -Resoluo no 304, de 09 de agosto de 2000. .................... 202

    Associao Brasileira de Antropologia (ABA), Ofcio 118,de 19 de abril de 2001. .................................................... 206

  • 9 mais do que oportuna a publicao deste livro patrocinado pelaABA e resultante de um ciclo de debates desenvolvido pela gesto doprofessor Ruben G. Oliven. medida que a antropologia brasileira crescee se diversifica, acompanhando, de diferentes formas, o processo dediferenciao da sociedade brasileira, as demandas sobre os antroplogose os cenrios em que so chamados a atuar vo tornando-se maiscomplexos, trazendo novos desafios profissionais, acadmicos e polticos.Esta complexidade e estes desafios confluem para um debate que nopoderia deixar de ter como um dos seus eixos principais a questo datica. Com suas reverberaes normativas, a tica implica a busca, porparte de uma coletividade, de princpios aceitveis de comportamento eao. , portanto, uma discusso sempre poltica e sujeita a mudanas.

    A Associao Brasileira de Antropologia, com a sua identidadefortemente marcada por uma atuao poltica junto ao Estado e socie-dade civil, tem, ao longo do tempo, realizado vrias articulaes comcausas voltadas tanto para a defesa dos direitos humanos em geral, quantopara a defesa de sujeitos de direitos diferenciados. Isto nos insere,imediatamente, nas frentes de batalhas de questes de ponta da democraciacontempornea, como a da relao entre minorias tnicas e o Estado-nao, ou a de polticas pblicas diferenciadas para reparar injustiashistricas perpretadas contra determinados segmentos da sociedade.Ultimamente, por fora das dinmicas polticas que atravessam asociedade brasileira, o papel do antroplogo, mais uma vez, tem sidocolocado sob fogo cruzado. O que est em jogo no nada novo, so,em geral, conflitos de interesses envolvendo a definio de territriostnicos (terras de ndios e quilombos). Como a autoridade acadmica daantropologia baseia-se largamente em um vasto conhecimento acumuladosobre a questo tnica, os antroplogos so os profissionais chamados aintervir nestes cenrios sempre conflitivos que, em geral, envolvem atorespolticos e econmicos imersos nas tpicas lutas por recursos das frentesde expanso, com a exceo, relevante, dos processos de etnognese noNordeste.

    Existem, porm, novidades no ciclo atual de tentativas de deslocara importncia da contribuio antropolgica nos processos polticos eadministrativos de criao de territrios tnicos. Algumas esto ligadasao campo da prpria antropologia e vrias das questes levantadas nestelivro apontam nesta direo. Afinal, cada vez mais bvia a existnciade contra-laudos que, contratados por interesses econmicos sobre terrasindgenas, esto insinuando um cenrio, ainda no totalmente delineado,

    Prefcio

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    da confrontao entre antroplogos posicionados em campos polticos eeconmicos distintos. Esta situao emergente indica a necessidadeurgente de ir adiante com uma discusso que transborda contedos ticos:qual a responsabilidade social do antroplogo? Ainda internamente aonosso prprio campo, v-se, de forma crescente, a necessidade de melhorcompreender o prprio laudo antropolgico enquanto documento que,perpassado pelo saber disciplinar, insere-se, entretanto, em um conflitivocampo de relaes com outras disciplinas e outros profissionais, emespecial, os operadores do direito, com suas prticas, instituies erepresentaes.

    preciso reconhecer que os laudos e os processos jurdicos,administrativos e polticos associados, representam, hoje, a interface maisquente da antropologia com a sociedade e os Estados brasileiros. Assim,aqui tambm esto em jogo a identidade da disciplina e a sua inseroem debates maiores com alta incidncia nas formas de sermos concebidos.No seria, portanto, de todo inapropriado voltarmos o nosso prprioolhar sobre este campo de atividades no Brasil. s reflexes j existentes,seria interessante somar pesquisas extensas, como teses de doutorado,sobre, por exemplo, os problemas ticos envolvendo os laudosantropolgicos; sobre as relaes entre os antroplogos e a FUNAI mormente no que diz respeito demarcao de terras indgenas; a relaoentre os antroplogos e a Fundao Palmares e, tendo em vista osacontecimentos recentes no que toca demarcao de terras de quilombos,o INCRA; sobre a relao entre os antroplogos e o campo dos operadoresdo direito, envolvendo uma ampla gama, mas cujo ponto de partida bempoderia ser a relao entre antroplogos e a Procuradoria Geral daRepblica. Por ltimo, mas no menos importante, caberia pesquisar aatuao dos antroplogos na sociedade civil, em organizaes no-governamentais que conformam, elas mesmas, um campo de poder emsi. Todas estas questes tornam-se ainda mais relevantes se for correta apreviso de que o tamanho do mercado acadmico para a antropologiadiminuir progressivamente frente participao em outras atividades,chegando, quem sabe, situao presente nos EUA onde a maioria dosantroplogos trabalha fora das universidades. Nestas circunstncias,emerge tambm a necessidade de pensar o futuro da Associao Brasileirade Antropologia. interessante notar que, salvo engano, no existenenhuma tese de doutorado sobre o papel da ABA na estruturao docampo da antropologia. Hoje, visvel o crescimento consistente daABA e a tendncia a tornar-se cada vez mais profissionalizada. O quequeremos da nossa Associao no futuro?

    Como se v, a leitura de Antropologia e tica: o debate atual noBrasil traz baila problemas fundamentais para nossa disciplina, poisabrangem desde as relaes entre os pesquisadores e os sujeitos dapesquisa, aos impactos do trabalho antropolgico na vida das populaes,

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    passando por diversas questes epistemolgicas. Esto em xeque, tambm,e na prtica, as fronteiras da antropologia com outras disciplinas comoas cincias da sade e as jurdicas, tanto quanto com os atores profissionaise sociopolticos vinculados a estes campos. E aqui impossvel nomencionar os problemas criados pelas normatizaes do Ministrio daSade, em especial as veiculadas pelo Conselho Nacional de Sade (CNS)e pela Comisso Nacional de tica em Pesquisa (CONEP, instnciavinculada ao CNS).

    Como argumentado por vrios antroplogos neste livro e emdiversos debates, h pelo menos dois planos que se entrecruzam a partirda posio biocntrica, conforme a denomina Lus Roberto Cardoso deOliveira, da CONEP, uma Comisso essencialmente marcada pelosproblemas de pesquisa na rea da sude. O primeiro permeia a todos osdemais e a confuso entre pesquisa em seres humanos e pesquisacom seres humanos. Esta ltima tpica dos mtodos etnogrficos nosquais, desde que a pesquisa de campo adquiriu status cannico na nossadisciplina, a aceitao e confiana das pessoas a serem pesquisadas sofundamentais para a atuao do antroplogo pesquisador. S quando aceito e goza da confiana das pessoas que o antroplogo est prontopara comear uma pesquisa etnogrfica que, claro, no incua porser com e no em seres humanos. A conscincia disto se expressa noCdigo de tica da ABA quando afirma a necessidade de preservarinformaes confidenciais, pois seu potencial pernicioso bvio. OCdigo de tica da ABA, alis, a prova de que os antroplogospreocupam-se em normatizar suas atividades.

    O segundo plano que quero considerar refere-se necessidade deconsentimento informado por escrito. No vou repetir os argumentosque vrios colegas apresentam aqui neste livro de maneira mais detalhadae elaborada do que posso fazer agora. Mas claro que em diferentessituaes de pesquisa, para no dizer em quase todas, a solicitao inicialde assinatura de um documento por parte do antroplogo introduziriaum stress na relao entre pesquisador e sujeitos de pesquisa sobretudoem populaes sem ou com baixo domnio da linguagem escrita e formaldo Estado e do direito que facilmente pode derivar na perda do elo deconfiana, referido anteriormente, crucial para o bom desempenho dapesquisa etnogrfica. De novo, claro que estamos conscientes de queas populaes devem saber do que trata uma pesquisa da qual fazemparte, conforme se v em nosso Cdigo de tica que afirma o direito informao sobre a natureza da pesquisa, e recusa a dela participar,tanto quanto ao acesso aos resultados da investigao.

    Mas tambm claro para qualquer antroplogo que os primeirosmomentos de uma pesquisa de campo, freqentemente os mais delicadosdada a intensidade do estranhamento nestas ocasies, no so os maisadequados para realmente fazer passar de maneira completa e diferenciada

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    os objetivos e pormenores de uma pesquisa, em especial porque oantroplogo em geral vive com quem ele pesquisa, e confiana, umtrusmo, no se adquire de imediato. Alm disso, e por ltimo, hum problema metodolgico, dentre muitos, que merece destaque. Sedigo, no comeo do meu trabalho de campo, o escopo inteiro do problemaque pesquiso, corro o risco, srio e irremedivel na antropologia, deestar induzindo as pessoas a pensarem como eu, assim como a verem oque eu suponho que eles vejam e sejam. Chegamos, ento, ironicamente,a ponto de no necessitarmos fazer a pesquisa de campo pois que, aoinformar detalhadamente a todos o que espero deles, posso obter apenasaquilo que j inferira em um momento de reflexo prvio pesquisapropriamente dita, quando ela no passava de um projeto. V-se comoalgo que no problemtico para cincias da sade pode tornar-se umempecilho intransponvel para a pesquisa bsica em antropologia.

    So por esses e outros motivos, fartamente debatidos nos captulosseguintes, que a ABA vem consistentemente (veja-se, por exemplo, oofcio assinado por Ruben G. Oliven, anexo a este livro) posicionando-se contra a subordinao, na prtica, da pesquisa antropolgica aoConselho Nacional de Sade e entende ser este fato uma extrapolaodas competncias daquele conselho. Frise-se que a ABA no parte deuma posio pretensamente corporativa que excluiria os antroplogosdo alcance da tica na pesquisa. Ao contrrio, a Associao no apenastem o seu prprio Cdigo de tica, a que todos os antroplogospesquisadores ciosos de suas responsabilidades se submetem, mas tambm,leia-se no ofcio j mencionado, aceita a regulamentao da FUNAI deacesso de pesquisadores a reas indgenas. No que esta regulamentaono esteja sujeita a crticas e aperfeioamentos. Porm, aqui no se vum biocentrismo, mas uma concertao multidisciplinar emultiinstitucional. A relao entre antroplogos e a CONEP certamentedemandar maiores aes no futuro.

    Dada a centralidade da pesquisa de campo e da atuao polticados antroplogos brasileiros na defesa dos direitos humanos, seria umcontrasenso supor alguma indisposio quanto necessidade tica deproteo dos interesses das populaes pesquisadas. Ao contrrio, aatuao da ABA e a organizao de livros como o excelente volume queo leitor agora tem em mos, ele mesmo fruto de ricos e intensos debates,so uma demonstrao clara de que os antroplogos brasileiros estoimbudos da importncia da sua responsabilidade social e poltica emovidos pelos mais altos parmetros ticos.

    Gustavo Lins Ribeiro

    Presidente da Associao Brasileira de Antropologia

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    Introduo

    A primeira Reunio Brasileira de Antropologia foi realizada em1953 no Rio de Janeiro e durante a segunda Reunio Brasileira deAntropologia, realizada em Salvador em 1955, foi criada a ABA Associao Brasileira de Antropologia uma das mais antigas associaescientficas e profissionais do Brasil. Historicamente, ela tem se pautadopor trs compromissos fundamentais: o respeito pela diversidade deposies cientficas entre seus associados, a seriedade de suas atividadesacadmicas e o compromisso intransigente com populaes com as quaisa Associao est envolvida, por meio de pesquisas ou de intervenessociais: sociedades indgenas, remanescentes de comunidades dequilombos, diferentes minorias e grupos vulnerveis da sociedadebrasileira.

    A tica sempre foi uma das preocupaes centrais da ABA. Agesto 2000-2002 escolheu Antropologia e tica como tema central dobinio. O tema sempre esteve presente entre as preocupaes de nossosassociados. A ABA possui um Cdigo de tica, criado na dcada de1980, e uma Comisso de tica. Desde ento, temos colaborado com aProcuradoria Geral da Repblica em questes que envolvem direitos einteresses de populaes indgenas, remanescentes de quilombos, grupostnicos e minorias.

    Mas os novos desafios que vm sendo apresentados aosantroplogos fizeram com que o tema da tica na atividade antropolgicanecessitasse urgentemente ser rediscutido. H uma grande diversificaona atividade profissional de nossos associados. Antigamente, a maioriadeles trabalhava em universidades e museus pblicos. Atualmente, hantroplogos trabalhando em universidades privadas, diferentes centrosde pesquisa, organizaes no-governamentais, Procuradoria Geral daRepblica, Funai, empresas particulares etc. Tudo isto tornou imperiosoa necessidade de pensar e repensar nossos compromissos com aquelesque pesquisamos e interagimos. Decidimos desenvolver essas atividadesatravs de Oficinas de Trabalho, de forma descentralizada e delegandosua organizao a grupos de scios em dez unidades federativas dediferentes regies do Brasil, de modo a atingir o maior nmero possvelde pessoas. Esse conjunto de oficinas culminou num simpsio realizadona 23a Reunio Brasileira de Antropologia, em Gramado, RS, em junhode 2002. Os temas desses eventos foram: a) Oficina de Trabalho sobretica e Procedimentos de Pesquisa; b) Oficina de Trabalho sobre tica ePopulaes Indgenas; c) Oficina de Trabalho sobre tica, Sade e DireitosReprodutivos; d) Oficina de Trabalho sobre tica, Direitos Humanos e

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    Relaes Raciais; e e) Simpsio sobre Antropologia e tica. Muitosforam os colaboradores e a todos agradecemos. Todos esses eventos foramefetivados com o apoio da Fundao Ford.

    Este livro um reflexo desse conjunto de atividades. Organizamosas diversas comunicaes, de tal modo que ficasse mais fcil para oleitor se orientar nas especificidades do tema. Assim, o presente volumeest dividido em quatro partes:

    Parte I tica e Antropologia: aspectos gerais, com os artigos deRoberto Cardoso de Oliveira, Luis Roberto Cardoso de Oliveira e GuitaGrin Debert;

    Parte II tica, Antropologia e Multidisciplinariedade, com artigosde Maria Luiza Heilborn, Ilka Boaventura Leite, Roberto Kant de Lima,Marilda Batista e Ceres Vctora;

    Parte III tica e Antropologia Indgena, com artigos de AlcidaRita Ramos, Slvio Coelho dos Santos, Joo Pacheco de Oliveira, VilmaFigueiredo e Mrcio Santilli;

    Parte IV tica e Antropologia da Sade, com artigos de LuizFernando Dias Duarte, Daniela Knauth, Carlos Caroso, Russel ParryScott e Jos Roberto Goldim.

    Como fica evidente atravs dos artigos includos nesse livro, hum envolvimento cada vez maior, por parte dos antroplogos, com umnmero crescente de questes colocadas na interface com outrasdisciplinas, como a Medicina, o Direito, a Educao, entre outras, quetem feito com que nos deparemos com requerimentos que no pertenciamoriginalmente tradio antropolgica.

    Uma dessas questes a que se refere ao termo de consentimentoinformado por escrito, atualmente solicitado por muitas agnciasinternacionais financiadoras de projetos de pesquisa, editoras de livros eperidicos, cuja validade tem sido questionada por antroplogos quetrabalham, entre outras, com populaes grafas ou iletradas.

    Tambm a questo dos laudos periciais antropolgicos despontacomo importante. Estes, embora sejam formulados a partir, muitas vezes,de etnografias, se constituem como documentos jurdicos que influemem definies sobre demarcao de terras e passam a ser submetidos auma lgica judicial e aos procedimentos ticos que lhe dizem respeito.H, assim, uma questo, por parte dos antroplogos, sobre comopreservar a tradio de um fazer antropolgico e, ao mesmo tempo,adaptar as novas demandas que se impem, seja por agnciasfinanciadoras, ou comits de tica, ou por outras reas com as quais aAntropologia interage que, nem sempre, esto em acordo com o tipo depesquisa qualitativa ou etnogrfica.

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    Assim, observamos que, embora os princpios expressos no Cdigode tica sejam bastante objetivos e relativamente simples, h toda umacomplexidade que envolve a execuo desses princpios ticos de respeitoe proteo aos direitos dos diferentes povos. E que as nobres pretensesticas da nossa disciplina, constantes no Cdigo da ABA, estavam longede serem livres de conflitos. Essas reflexes ficam reforadas na medidaem que percebemos que a ABA vem representando um papel de mediado-ra de conflitos e, em particular na sua histria mais recente, tem sidochamada a se pronunciar sobre interesses de grupos especficos, atendendoa uma crescente demanda de avaliao, interveno e mediao deconflitos em diversas esferas.

    O artigo de Roberto Cardoso de Oliveira, que abre essa coletnea,contempla uma reflexo sobre a Antropologia da Ao que diferenteda antropologia aplicada por portar uma preocupao com a moralidadee com a eticidade. Um dos seus argumentos que o etnlogo orgni-co, e os problemas prticos que ele enfrenta na situao de mediador,pode ser mesmo considerado uma imposio de seu prprio trabalho. Opapel de tradutores de sistemas culturais no plano cognitivo, segundo oautor, no nos torna isentos de responsabilidade prtica, mesmo porquese poder sempre dizer que j o mediar seria uma forma de agir, o quenos remete automaticamente esfera da tica e da moral, seja nas atividadesacadmicas, de assessoramento no servio pblico ou nas ONGs.

    A pertinncia das reflexes de Roberto Cardoso de Oliveirarepercute em vrios outros artigos dessa coletnea, que se debruamsobre uma srie de contextos de ao dos antroplogos, os quais seconfrontam com outras formas de agir, ou melhor, de interagir. Umexemplo o artigo de Slvio Coelho dos Santos, que destaca questesprticas que se colocam aos antroplogos que se envolvem emconsultorias, laudos periciais, projetos de educao, entre outros, e propeuma importante reflexo sobre o papel do antroplogo. Uma teorizaomais sistemtica sobre questes prticas da Antropologia pode ser vistatanto no artigo de Ilka Boaventura Leite, que se refere produo delaudos periciais antropolgicos, quanto no de Roberto Kant de Lima,que pensa a produo jurdica e a produo antropolgica,problematizando teoricamente o campo da interlocuo, a partir de suasexperincias de antroplogo na convivncia com a rea do Direito.

    Alm dessas reflexes, a inter ou multi-disciplinaridade ocupauma parte importante desse livro, considerando que a convivncia depesquisadores de reas distintas implica num esforo de acomodaoentre lgicas distintas sobre o que constitui a tica em pesquisa comsujeitos sociais, como ressalta Maria Luiza Heilborn em seu artigo.

    Esse questionamento perpassa tambm todo o artigo de CarlosCaroso cuja atuao numa rea de cooperao interdisciplinar no caso,

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    a Antropologia da Sade e das Prticas Teraputicas e a Sade Coletiva possibilita que ele destaque as diferentes lgicas de distintos campos deconhecimento quando se referem ao mesmo objeto de pesquisa.

    Vilma Figueiredo, por outro lado, no seu artigo, concebe outrasmatizes desse debate, ao questionar a realidade da interdisciplinariedadeou inter-institucionalidade dos Comits de tica em Pesquisa, maisespecificamente da Comisso Nacional de tica em Pesquisa CONEP que se encontra, segundo ela, indevidamente abrigada no ConselhoNacional de Sade, ou seja, um conselho de rea especfica vinculado aum Ministrio de competncia tpica.

    A questo da CONEP tambm se faz presente em outros artigosdesse livro. A esse respeito, vale ressaltar que as novas Diretrizes e NormasRegulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, de 1996 Resoluo no 196/1996 do Ministrio da Sade , um documentoreconhecido pelos antroplogos como de grande valor, que tem por basedeclaraes e diretrizes to importantes quanto o Cdigo de Nuremberg(1947), a Declarao dos Direitos do Homem (1948), a Declarao deHelsinque (1964, 1975, 1983, 1989), as Propostas de Diretrizes ticasInternacionais para Pesquisas Biomdicas Envolvendo Seres Humanos(CIOMS/OMS 1982 e 1993), entre outros (CONEP resoluo196/1996 em anexo).

    Mas, apesar da sua venervel histria, percebe-se no termopesquisas envolvendo seres humanos uma sobreposio de doissignificados distintos, um que se refere a pesquisas em seres humanos eoutro a pesquisas com seres humanos. Esta distino debatidaprincipalmente nos artigos de Luis Roberto Cardoso de Oliveira e deAlcida Rita Ramos. O primeiro, contesta a tendncia ao biocentrismopresente nessa ambigidade, ao passo que a segunda reflete sobre comoessa sobreposio pode influenciar as representaes e prticas sobrepopulaes indgenas.

    Este mesmo biocentrismo no poderia deixar de ser debatido pelosartigos que compem a parte IV desse livro que se dedica, entre outrascoisas, aos embates da Antropologia da Sade com a rea Biomdica. nesse sentido que Luiz Fernando Dias Duarte critica a ideologia dabiomedicina, e problematiza uma tica universal, inspirada pelarepresentao da pessoa livre, igual e autnoma intrnseca ideologiaindividualista ocidental com o acesso a essas formas outras de ser pessoaque constituem o cardpio essencial da comparao antropolgica.

    Uma grande parte dos artigos dessa coletnea refere-se, especifica-mente, aos procedimentos de pesquisa e sua relao com a tica. Assim,Marilda Batista oferece uma reflexo sobre o cinema etnogrfico e o usoda imagem, reforando a idia de que [...] Como autor de sua obra, o

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    antroplogo-cineasta deve assumir a inteira responsabilidade do que decidefilmar e mostrar ao pblico, porm sem jamais ferir a dignidade dooutro enquanto indivduo. Nesse mesmo sentido, ou seja, o de pensar aresponsabilidade do pesquisador, que apreciamos as experinciasrelatadas no artigo de Russel Perry Scott que problematiza a aplicaodos resultados da pesquisa antropolgica a partir da Antropologia daSade.

    Uma outra dimenso da pesquisa antropolgica que ganha espaoem vrios artigos, mas especialmente no de Guita Grin Debert e deDaniela Knauth, a relao entre pesquisador-pesquisado. A partirde relato sobre sua pesquisa na rea da Antropologia do Corpo e daSade, mais particularmente sobre Mulheres e a Aids, Knauth retomaum dos preceitos bsicos da Antropologia que diz respeito qualidadeda relao entre esses dois sujeitos, trazendo para dentro da questometodolgica uma reflexo de ordem tica. Debert, por outro lado,tambm refletindo sobre a dade pesquisador-pesquisado, questiona asrelaes de poder que ela encerra. Tradicionalmente o antroplogo, comopesquisador, concebido como detentor de status, prestgio e poder[...], mas a autora quer trazer o debate para outras situaes em que arelao entre pesquisador e pesquisado se inverte, ou pelo menos, emque a desigualdade entre as partes no to evidente [...] defendendo,entre outras coisas, a idia de que um cdigo de tica deve oferecertambm uma proteo ao pesquisador e comunidade cientfica.

    Ainda refletindo sobre a relao pesquisador-pesquisado queesse livro contempla o debate sobre o Estatuto do ndio (Lei no 6001/1973), retomado por Joo Pacheco de Oliveira e Mrcio Santilli naparte III dessa publicao. Pacheco de Oliveira, com respeito a essaproblemtica, levanta questes sobre os papis atribudos aos antroplogosdentro dessa lei, questionando as presenas e as ausncias de agentessociais relacionados questo indgena. Santilli, por sua vez, refletesobre as mudanas que podem ocorrer nessa rea de pesquisa bemcomo na prpria ABA em decorrncia da reviso do Estatuto do ndio.

    Questes mais significativas sobre os dilemas do consentimentoinformado em pesquisas antropolgicas so abordadas em vrios artigosdessa publicao, especialmente naquele que fecha esse volume de autoriade Jos Roberto Goldim.

    Finalmente, o que esse livro visa refletir sobre dimenses tericase prticas concernentes tica no fazer antropolgico, bem comoapresentar as configuraes do debate atual no Brasil sobre essaproblemtica. O que fica evidente pelos artigos presentes nesse volume que as questes ticas so muito mais complexas do que aparentam eno podem ser tratadas de forma burocrtica, com a criao de normas-

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    padro para se lidar com situaes, na maior parte das vezes imprevisveis,que se colocam na prtica profissional. A tica , dessa forma,fundamentalmente reflexiva. O que esse livro vem apresentar soelementos para essa reflexo.

    Os organizadores

  • Parte ITICA E ANTROPOLOGIA: ASPECTOS GERAIS

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    O MAL-ESTAR DA TICA NA ANTROPOLOGIA PRTICA

    Roberto Cardoso de Oliveira

    Neste simpsio que a ABA decidiu promover sobre Antropologiae tica,1 creio no estar saindo do tema quando a ele agrego o que estouchamando de prtica. Por esse termo quero me referir a uma modalidadede antropologia da ao, conforme a definio dada por Sol Tax em1952, como sendo bem diferente da to criticada, poca, antropologiaaplicada esta ltima solidria de um praticismo inaceitvel por quempretenda basear a disciplina em slido amparo terico. Porm, quandoevoco a antropologia da ao como diferente da antropologia aplicada cuja histria sempre esteve associada ao colonialismo , no para fustigara vocao intervencionista da disciplina, mas apenas para sublinhar ocarter de sua atuao na prtica social (entendida tambm como praxis),ou ainda, se quiser, o seu agir no mundo moral. Uma preocupao coma moralidade, ou seja, com o compromisso de assegurar boa qualidadede vida, e a eticidade, ou seja, em garantir condies de se chegar aconsensos pela via do dilogo entre as partes inseridas por exemplo no sistema de frico intertnica. essa preocupao que aqui desejorecuperar como alvo legtimo do trabalho de uma antropologiacomprometida no apenas com a busca de conhecimento sobre seu objetode pesquisa, mas sobretudo com a vida dos sujeitos submetidos observao. Mas para dissociar essa atuao de sua dimenso perversaque o praticismo, quero recuperar a noo de prtica nos termos deuma tradio inerente filosofia moral. Ademais, se por um lado aantropologia aplicada aqui descartada, por no orientar o seu exercciopelo dilogo com aqueles sobre os quais atua, por outro lado, tambmh que se descartar a antropologia da ao, na formulao que lhedeu Sol Tax, por seu alto dficit reflexivo, particularmente num momen-to em que a nossa disciplina passou a ser eminentemente reflexiva. Equando numa reunio como esta nos propomos a discutir a relao entreantropologia e tica, somos levados a refletir sobre o espao por certosocial que se mostre como dotado de total legitimidade para nelepodermos exercer o nosso mtier. Parece-me que hoje em dia, quan-do os povos indgenas ganharam voz prpria em suas relaes coma sociedade nacional, a tarefa tica que nos coube claramente a demediao no mbito da comunicao intertnica ou, em outras pala-vras, no mbito do agir comunicativo esse mesmo agir de quenos fala Habermas , de tal modo que sempre que estivermos volta-dos para a realizao do trabalho etnogrfico, tambm estaremos abertospara as questes que a prpria prtica indgena nos propuser.

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    Mas como entender essa prtica? Recorro aqui ao seu sentidooriginrio, precisamente para ser muito sucinto quele que estpresente em sua clssica passagem do campo da filosofia para o daantropologia pelas mos de Lucien Lvy-Bruhl (1910, p. 9, traduonossa, grifo nosso), quando escreve, em seu La morale et la science desmoeurs, que a prtica designa as regras de conduta individual e coletiva,o sistema de direitos e deveres, em uma palavra as relaes morais doshomens entre si. Sublinho aqui a expresso relaes morais e dou aela um sentido moderno, como o de relaes dotadas de um compromissocom o direito de bem viver dos povos e com o dever de assegurar condiesde possibilidade de estabelecimento de acordos livremente negociadosentre interlocutores. No caso das relaes entre ndios e no-ndios, dasquais me ocuparei nesta exposio, esta negociao se d entreinterlocutores representantes de etnias em confronto. Com isso, estamosnas esferas da tica e da moral enquanto antroplogos comprometidoscom essa concepo de prtica. Sem esquecermos que essa prtica mais do que uma noo, mas um conceito de raiz kantiana, portantopreso a uma tradio Iluminista. E, em que pese a crtica ps-modernaendereada a essa tradio, h ainda espao para a Razo s que nomais a razo apenas ilustrada, porm dialgica, ou, melhor ainda,argumentativa.

    Essas consideraes iniciais servem para nos conduzir ao quadrotico e moral em que se insere o trabalho antropol-gico. Quando apesquisa vai alm da construo de conhe-cimentos e se v enleada emdemandas de ao. Qual de ns, especialmente os etnlogos, no se viuum dia pressionado para agir simultaneamente ao seu esforo em conhecer.Quero me reportar inicialmente a algumas experincias vividas por mimtempos atrs, quando eu ainda fazia etnografia. Registro primeiramenteuma dessas experincias ocorrida ao tempo em que fui convidado pelaFUNAI (em 1975) para estudar, por meio de um levantamento de sobrevoem trs dos igaraps do alto rio Solimes, a situao dos Tkna diantedo avano do Movimento da Cruz liderado pelo carismtico JosFrancisco da Cruz.2 Meu problema tico de ento era o de como manterminha independncia de pesquisador em relao agncia indigenistaque me contratara, ainda que jamais tenha recebido dela qualquerrecomendao para intervir em seu nome na situao intertnica. Claroque cuidei de me manter como um pesquisador destitudo da mais levepropenso para interferir diretamente junto ao encarregado do PostoIndgena Ticuna ou com os franciscanos da Prelazia do Alto Solimesem So Paulo de Olivena, sem com isso abdicar de meu conscienteenvolvimento moral com os Tkna, submetidos intensa catequese daIrmandade da Cruz. Porm, meu passado de funcionrio do SPI j quenele havia estado vinculado por quatro anos em meados da dcada de1950 tinha feito minha cabea de forma decisiva: no havia como

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    deixar de pesquisar sem que de alguma forma deixasse de atuar. E essadisposio participativa na vida local, originada na pesquisa terna econtinuada na tkna, haveria de marcar o meu trabalho de antroplogo:uma saudvel combinao de etnlogo e de indigenista da qual nuncaseria liberto. Durante essa breve investigao sobre o Movimentoda Cruz, em nenhum momento deixei de discutir com os religiosos daPrelazia ou com o funcionrio da FUNAI, herdeira do SPI, o teor de suasatividades junto aos Tkna. Enquanto o rgo protecionista via combons olhos a ao domesticadora dos ndios pela Irmandade da Cruz, jque a atitude puritana sistemtica dos irmos da Cruz impedia quaisquerfestas, rituais e bebidas aos seus membros (o que facilitava o controleindigenista), em contrapartida a Prelazia no via com simpatia talcompetio na catequese dos Tkna. Nesse sentido, eu me sentia nomeio, entre uns e outros, e, tambm, entre os ndios j galvanizados peloMovimento e aqueles ainda no atingidos por ele. Como em nenhumaocasio testemunhei qualquer conflito entre os atores sociais envolvidosna situao intertnica, no cheguei a ser chamado para interceder porqualquer uma das partes, ainda que ao nvel do discurso estivesse semprequestionando uns e outros. Questionamento esse no s em busca decompreend-los, mas tambm para induzi-los a aes que me parecessemmais adequadas com vistas a assegurar condies tais que possibili-tassem decises destinadas a proteg-los. Em verdade, vejo hoje queem todo o perodo de investigao estive observando e participando emdiscusses com os diferentes agentes locais inseridos no sistema de fricointertnica como se eu ainda fosse aquele antigo etnlogo do SPI... Enfim,o meu maior propsito aqui sugerir, pela considerao de alguns cenriosintertnicos, como a Razo argumentativa pode atuar diante de verdadeiroscurto-circuitos semnticos. Em outras palavras, quando e em quecondies sistemas culturais entram em contradio e geram uma distorona comunicao. Sem esquecermos, entretanto, que no meio das culturasem confronto est o espao ocupado pelo antroplogo que no s asestuda, como muitas vezes atua sobre elas, consciente ouinconscientemente. E nessa condio mediadora entre culturas e maisdo que isso, entre pessoas de carne e osso insere-se o antroplogo e lhedeixa muitas vezes numa situao de tal desconforto ou, melhor ainda,repetindo aqui o ttulo desta exposio, cria-lhe um indefectvel mal-estar tico.

    Se olharmos um pouco para trs, verificamos que h uma tendnciaem nossa disciplina em reconhecermos a participao ativa doantroplogo na realidade investigada como que realizando um tipo departicipao observante uma expresso sobrevivente das atividadesde observadores atuantes, como so os assistentes sociais ou oseducadores. Uma expresso, porm, que remete mais para o carter deinterveno na realidade estudada do que para a questo tica que a

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    envolve, j que uns e outros tendem a levar consigo procedimentos eobjetivos previamente definidos e, sobretudo, legitimados na prpriatica de suas respectivas profisses: certamente com seus prprios cdigosde tica, nem sempre permeveis crtica daqueles que so alvo de suaao. Mas no caso de nossa profisso, prefiro me valer da expressogramsciana etnlogo orgnico, quem sabe renovando-a, para acentuara relao umbilical que esse pesquisador possui com uma entidade, umaclasse social, um setor de classe ou um dos segmentos desse setor emque est ideologicamente inserido, j que esse etnlogo estar semprefalando de algum lugar. Nos cenrios que pretendo examinar nestaoportunidade, esse etnlogo orgnico estar posicionado no setor polticoindigenista, seja ele governamental ou alternativo seja em seu segmentomissionrio (de diferentes confisses), ou seja, ainda junto s inmerasONGs que, de conformidade com suas respectivas orientaesprogramticas, procuram expressar as demandas da sociedade civil.

    Muitos dos colegas aqui presentes tm experincia nessas atividadeseminentemente prticas. De meu lado, procurarei agora recorrer a algunscenrios nos quais participei em diferentes momentos de minha vidaprofissional, que nos permitiro refletir sobre a ao do etnlogoindigenista como um natural mediador entre culturas em confronto. E nessa mediao que se coloca o problema tico. Mas devo dizer queestarei me respaldando como preliminar na tica discursiva, como,alis, tenho feito em vrios escritos, quando tenho recorrido a ela comouma estratgia adequada para examinar as relaes entre culturas tomadascomo sistemas incomensurveis. H, porm, de se relativisar essa noode incomensurabilidade. Para tanto, caberia considerar esses sistemas por exemplo: uma cultura indgena frente cultura ou sub-cultura regional como sendo comensurveis pelo fato, etnograficamente constatado,segundo o qual as fronteiras semnticas entre tais ou quais culturas noso intransponveis. Ao contrrio, elas revelam-se porosas, passveis deultrapassagem pelo e somente pelo argumento no discurso, portantosuscetvel de reflexo por ambas as partes envolvidas na relao dialgica.Da ser a tica discursiva a postura terica que mais se afina a meumodo de ver com a investigao das questes ticas e morais com quenos defrontamos no exerccio de nossa profisso.

    Gostaria de ilustrar isso, inicialmente, com um exemplo tiradode minha experincia pessoal com os ndios Terna. Um certo dia, em1957, quando eu dava continuidade a uma pesquisa iniciada dois anosantes, deparei-me com uma situao inesperada. Havia entrado em umacasa de comrcio na pequena cidade de Miranda para comprar algunsalimentos a fim de lev-los para Cachoeirinha, a aldeia terna em queestava fazendo minha etnografia, quando percebi que um casal de ndiosda aldeia Moreira (como depois fiquei sabendo) estava esperando paraser atendido h bastante tempo. Quando eu e mais alguns fregueses

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    chegamos, o casal j estava aguardando no balco. Ns fomosimediatamente atendidos, enquanto o casal terna continuava aguardandohumildemente com uma inesgotvel pacincia. Percebi que j estavamhabituados a essa desconsiderao contumaz, j que nada falavam,simplesmente esperavam. Meu intuito na ocasio, ao entrar na casa, erao de entrevistar o comerciante, interessado que estava em ampliar minhainvestigao para as reas circunvizinhas s reservas terna. Tinha,portanto, de estabelecer relaes amveis para que fossem rentveis pesquisa. Mas nesse ano eu ainda vivia intensamente a condio deetnlogo orgnico, j que eu era etnlogo do SPI. Assim, sem maioresconsideraes sobre o destino de minha entrevista, procurei intervir nasituao perguntando ao proprietrio o porqu da demora em atender e isso com uma agressividade mal contida. Nessa hora no era opesquisador, mas o funcionrio que agia. Mas tal no foi a minha surpresaquando dele ouvi a seguinte justificao: Esses bugres no ligam poresperar, eles no tm pressa, o tempo para eles no conta como parans. Opinio sagaz de um pensador rural? Quem sabe! Mas claro queno me dei por satisfeito com tal argumento e pus-me a discutir com aveemncia de um jovem aprendiz de antropologia, tentando, pelo menos,implantar nele uma saudvel dvida em sua ao discriminatria. Porm,mais tarde, passei a ver esse argumento como um tema interessante dereflexo. Afora o preconceito tnico evidente, havia um saber (certamenteno uma sabedoria) expresso em uma concepo de tempo do tempoindgena que estava firmemente consolidada no senso comum local,aliengena. O registro desse episdio em minha caderneta de campo,recentemente consultada, levou-me de volta para aquele dilogo. E linaqueles apontamentos a seguinte frase: Ser que mais do que brigar,no deveria eu devotar-me a elucidar? Eis talvez a minha primeirapercepo da tarefa do antroplogo! Pode-se dizer que eu estava no meiode duas vises de mundo, de dois campos semnticos irreconciliveis,salvo pelo exerccio de uma argumentao que levasse o ndio e o regionala construrem um consenso: onde a razo argumentativa triunfaria! Nocheguei a tanto... A tica discursiva de Apel e de Habermas que nasceriaanos depois (nos anos 60) no seria antecipada por mim... Mas verificohoje que eu j intua sobre o rumo que o etnlogo deveria tomar enquantoorgnico.

    Todavia, esse fato me leva a sublinhar o lugar de mediador emque o etnlogo sempre se coloca ou levado a se colocar, queira ou no. uma imposio de seu prprio trabalho. Ao ocuparmos esse espaoque nos torna tradutores de sistemas culturais no plano cognitivo, issono nos torna isentos de responsabilidade prtica, portanto no planomoral, quando somos induzidos a agir. Inclusive se poder sempre dizerque j o mediar seria uma forma de agir. Estamos, assim, postos naesfera da tica e da moral! Sabemos que os dois mundos no casoexaminado, o do ndio e o do regional esto eivados de valores. Valores

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    que sustentam juzos diferenciados de seus agentes, igualmente defensveissegundo as particularidades de cada sistema cultural em que esses agentesesto inseridos. Qual a orientao que o pesquisador poderia adotar?Permanecer eqidistante, resguardado por uma neutralidade olmpica,ou participar efetivamente desse encontro entre dois mundos, a rigor,muitas vezes, um verdadeiro confronto? Retomo aqui a distino deGroenewold qual j recorri outras vezes sobre as esferas ticas: amicro, a meso e a macro. Recorde-se aqui: a microesfera como umespao ocupado pelas particularidades (portanto, da cultura tribal, emmeu exemplo); a macroesfera como o espao do universal ou daquiloque universalizado ou, ainda, como diria Louis Dumont, valoresuniversalizveis por uma sociedade mundial em busca de uma ticaplanetria (como indicam as investigaes de Karl-Otto Apel); ou, emoutras palavras, pela ONU, como no caso da Carta dos Direitos Humanos. assim que na mesoesfera, teramos enfim o espao ocupado pelosestados nacionais, cuja obrigao precpua seria a de garantir uma corretamediao entre valores tribais e planetrios, situados respectivamentenas esferas micro e macro. Portanto, entre sistemas de valores tidos comoparticulares e universais. H, entretanto, vrios senes a seremexaminados criticamente, quando se observa que as Naes Unidas noexprimem, a rigor, em suas decises, as vozes de todas as etnias doplaneta, o que torna os povos tribais destitudos de Estados nacionais no-representados naquele organismo. Este um fato. Porm, por outrolado, h de se considerar um outro fato, o de uma realidade que seimpe, posto que no h outra instncia como a ONU capaz de estabelecervalores de alcance planetrio pelo menos em sua pretenso e quesirvam de idias reguladoras do convvio mundial entre os povos, taiscomo a defesa do meio ambiente, da vida humana, da liberdade, contraa tortura e de outras grandes idias do gnero, malgrado as repetidasfrustraes que sua no-obedincia nos traz.

    Mas, voltemos aos cenrios etnogrficos. Um deles, do qualparticipei quando de minha estada entre os ndios Tapirap (1959), refere-se proibio do infanticdio; o outro, proporcio-nado pela literaturaetnolgica, trata da circunciso feminina (observvel em sociedadesmuulmanas). Ambos os cenrios envolvem particularidades culturaisque aos olhos universalizantes (melhor diria, ocidentalizantes) de umorganismo como a ONU, chocam-se com as decises tomadasmajoritariamente pelos estados-nacionais membros. O argumento tapirapde que o sacrifcio da terceira filha seria responsvel pela manutenoda populao em ndice demogrfico compatvel com o seu ecossistema,de modo a viabilizar a sobrevivncia do grupo tribal, e, portanto, de quea vida de todo um povo vale mais do que a de um indivduo, levou asmissionrias que assistiam esses ndios a proclamarem o contraditrio,segundo o qual a vida humana tem um valor absoluto, pois ela nos foi

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    concedida por Deus. Quanto ao outro cenrio, o da circunciso feminina(a levarmos em conta uma monografia sobre os muulmanos do Sudo),a questo imensamente controvertida entre a populao do pas, comvariaes tnicas significativas, o que, em absoluto, levou a pesquisadoraa uma posio confortvel de indiferena moral; todavia, ela trazargumentos interessantes e at certo ponto inesperados a propsitoda generalizada reao ocidental contra tal mutilao genital juntamentecom indcios de que o prazer sexual da mulher no teria sido extirpadopelo cumprimento dessa regra moral to particular. Essa antroploga,Ellen Gruenbaum, com seu livro The female circumcision controversy:an anthropological perspective, retoma a postura relativista da disciplinae parece cuidar de no interferir nos debates que presenciou. Uma posturaacadmica levada s ltimas conseqncias? Talvez! Mas o que nosensinam esses cenrios. O primeiro, sobre o infanticdio tapirap, mostramissionrias cumprindo sua desobriga junto a uma etnia indgena cujoalto estgio de depopulao no mais justificaria (em termos de clculodemogrfico) valer-se do infanticdio para controle de uma populaoreduzida a pouco mais de uma centena de indivduos (dos mil queanteriormente possuam quando habitavam seu nicho original). Nessecaso especfico, essas missionrias convenceram os ndios Tapirap aabandonarem tal hbito recorrendo exclusivamente persuaso junto smes para que deixassem de sacrificar seu recm-nascido. Ao longo dotempo de sua permanncia entre esses ndios, elas recorreram ao discursoargumentativo para atravessarem a fronteira semntica que as separavados Tapirap. No caso do segundo cenrio, o da circunciso femininamuulmana, a postura relativista da antropologia levou a pesquisadora ano interferir, limitando-se a procurar compreender e a cotejar osargumentos prs e contras esgrimidos pela prpria populao do Sudo.Se as missionrias tinham por funo agir na sociedade tapirap, aantroploga obedeceu a uma prtica tradicional da disciplina, ainda queguardasse para si qualquer juzo moral. Valeria questionar se essaantroploga assumiu uma neutralidade recomendada por uma concepoexclusivamente acadmica em seu sentido perverso de absentesmo ou, pressionada pela divergncia interna observada na sociedademuulmana, preferiu apenas captar o significado dessas controvrsias, apartir das quais melhor poderia compreender a situao estudada. Eaqui uma reflexo se impe no sentido de se distinguir neutralidade danoo de imparcialidade;3 esta ltima, bom esclarecer, deve estar sempreintegrada no horizonte do etnlogo orgnico, uma vez que isso significaria em termos tanto cognitivos como morais a adoo de uma posturainstrumentalizada pela perspectiva adotada: nesse sentido, aimparcialidade apenas demanda que o intrprete se coloque emperspectiva (para usar aqui mais uma expresso de Dumont), portanto,de maneira crtica esforando-se para no deixar de responder, comargumentos, s objees advindas de interpretaes alternativas sobre o

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    problema em pauta. Porm, h de se reconhecer que se essa distinoresguarda o lugar da objetividade, no plano cognitivo no respondeadequadamente aos problemas confrontados pelo etnlogo orgnico oupela antropologia prtica, na forma como a estou concebendo. E nosimpele a considerar que, em ambos os casos dos Tapirap e dosmuulmanos , os cenrios descritos so perfeitamente compatveis comaquilo que nos ensina a alegoria etnogrfica, no entender de JamesClifford,4 na medida em que, ao relatar momentos da histria das relaesintertnicas, essas descries alegricas carregam uma proposta moral eque, nos termos da prpria teoria da tica do discurso, tendem a mostrar,ao fim e ao cabo, a (im)possibilidade ou, pelo menos, a complexidadede uma tica verdadeiramente planetria. Enfim, so questes que seimpem nossa reflexo.

    Retomando o modelo das esferas ticas h pouco mencionado,ouso dizer que, enquanto antroplogos orgnicos, nada nos impede deagir junto aos povos que estudamos, sempre sob o signo da solidariedade sendo esta solidariedade o modo pelo qual iluminamos o teor de nossaimparcialidade e, esta, sob o signo da justia. A eqidistncia moral epoltica, recomendada pela antiga academia, parece no se justificar nosdias de hoje. Mesmo porque, a partir da evidncia de que no existeobjetividade absoluta, sendo ela portanto uma mera iluso o que, bom lembrar, no implica em exorcizar toda e qualquer objetividade,mas somente o objetivismo , o espao de ao do pesquisador no podeficar vazio, pois nesse caso estaria sendo ocupado por funcionrios,polticos ou administradores no ou pouco comprometidos com anecessidade de alcanar consensos junto aos povos indgenas em suaao indigenista. Mas ao ocupar esse espao, o etnlogo orgnico passaa se orientar por esse binmio particular/universal, microesfera emacroesfera, sempre procurando medi-lo atravs de sua insero namesoesfera, isto , como sendo nela o lugar por excelncia onde seposicionar para o exerccio de sua funo elucidadora. Embora estejanessa esfera o espao tico do Estado nacional, em seu dever deintermediar os ordenamentos da Carta dos Direitos Humanos e os valoresparticulares das etnias indgenas, h de se reconhecer que cada vez maisesse espao tambm ocupado pela sociedade civil, especialmente pelasorganizaes no-governamentais que exercitam um indigenismoalternativo, alm de outras agncias, como as missionrias, todas elaspartilhando com o Estado a meso-esfera. O certo que esse modelo deeticidade das trs esferas ticas mostra-se bastante til para orientaros nossos passos no terreno da moral. E em termos de uma ticadiscursiva, h de se firmar a idia de que tal intermediao s se far pormeio da participao do pesquisador no dilogo entre as partes: asociedade nacional comprometida com princpios universais, j que ela membro da ONU, e firmou os instrumentos jurdicos elaborados pela

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    maioria dos estados-nacionais; e as sociedades indgenas, presas s suasparticularidades, seus hbitos tradicionais, responsveis por seu estar nomundo. Mas se isso no suficiente, no se pode dizer que seja pouco!Pois no se pode negar que com a Carta dos Direitos Humanos ficoumais vivel a defesa dos povos indgenas ou do meio ambiente diante dapossibilidade de invoc-la.

    Gostaria ainda de recorrer a um ltimo cenrio para ilustrar umepisdio de interveno desse etnlogo orgnico nas relaes entre ndiose o encarregado de Posto Indgena no exerccio de seu trabalho depesquisador. Quero destacar com isso a necessidade de um conhecimentodas particularidades da cultura indgena para sustentar a ao mediadorade qualquer agente externo, seja ele pesquisador, missionrio ou mem-bro de uma organizao no governamental. O fato que desejo apresentaragora, relaciona-se etnografia que realizei junto aos ndios Tknaainda em 1959, durante a minha primeira estadia entre eles, portanto,bem antes do levantamento que fui convidado a fazer sobre o Movimentoda Cruz, ao qual j me referi no incio desta exposio. Eu j no erafuncionrio do SPI, mas meu habitus profissional ainda estava colado aoetnlogo orgnico que eu era por dever de ofcio. Vi-me, assim, diantede uma questo litigiosa entre o encarregado do Posto Indgena e umndio tkna, morador no lado peruano da fronteira, para onde havia semudado, aps algumas desavenas vividas em Mariuau, uma aldeiatkna no lado brasileiro supervisionada diretamente pelo Posto do SPI.Esse ndio havia retornado a Mariuau para buscar sua irm, uma meninade l4 anos, para cas-la com o irmo de uma moa (ambos residentes nolado peruano) com a qual ele prprio queria casar-se. Eis formado oquadro de um matrimnio tkna preferencial. Eu fico com sua irm,e voc fica com a minha esta a sentena normalmente verbalizada nacomunidade indgena. Uma regra matrimonial de aceitao tcita pelosTkna. Mas sendo uma regra preferencial, no era de cumprimentoobrigatrio, razo pela qual permitiu que a av e uma tia da menina noconcordassem com a sada dela para o Peru. Ao mesmo tempo, era vis-vel que o encarregado do Posto tomava o partido da av e da tia, alegandoque a menina era muito pequena para casar e que no tinha por quedeixar o Brasil pelo Peru, o que ele dizia com certo ardor cvico... Vriasrazes estavam em jogo: a obedincia regra tribal tinha um valor em simesma, e a veemncia qual recorria o jovem tkna casadoiro revelavaque sem dar sua irm em troca ele no conseguiria a irm do outro paranoiva; o encarregado, de seu lado, achava que estava sendo patriota, jque tinha de assegurar a identidade brasileira da menina tkna (a parde uma visvel antipatia que nutria pelo jovem Tkna); e a av e a tia,ambas no querendo abrir mo da menina, cuja me havia falecido halguns anos. Diante desse verdadeiro litgio, fui levado a me manifestar.Procurei simplesmente descartar a deciso do encarregado, esclarecendo

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    ser parte da cultura tkna o intercmbio de irms e que por esse motivosua interveno era injustificvel na vida da comunidade. Diante disso,apenas recomendei que a questo s podia ser resolvida pelos litigantese sob o controle da comunidade indgena de Mariuau. No sei o queresolveram, j que viajei no dia seguinte. Porm, nesse episdio, o etnlogono abriu mo de tornar o conhecimento da cultura indgena, alcanadopela pesquisa etnogrfica, como um meio de impedir que uma aopensada no interior da lgica do sistema nacional fosse utilizada semnenhuma considerao s tradies tkna. Deixei aos ndios o espaopara o dilogo entre si, sem a interferncia do poder local aliengena.Lembro-me que nesse momento de minha interferncia, senti-menovamente como se ainda fosse etnlogo do SPI. Um antroplogo cnicopoderia dizer que essa a maldio do etnlogo orgnico. Seriaverdadeiramente uma maldio, esta de se assumir como um intermediriona elucidao de situaes equivocadas? No seria esta uma das maisapropriadas maneiras do etnlogo orgnico agir na situao intertnica?Penso que sim. Tal como a crtica da linguagem, que para um pensadorcomo Wittgenstein tende a funcionar como uma verdadeira terapia dafilosofia, por que a antropologia prtica no poderia cumprir uma funoteraputica no dilogo intertnico? Creio ser esta uma das principaisfunes que nos cabe exercer enquanto tradutores melhor ainda:intrpretes de idiomas culturais em confronto.

    Concluindo, eu diria que uma antropologia prtica, devotada ordem moral, vem progressivamente impondo-se ao exerccio de nossadisciplina simultaneamente investigao etnogrfica. Uns chamam issode politizao da disciplina. Prefiro a nfase na tica, como meio deinterveno discursiva do pesquisador na sociedade investigada, do quesua ao na esfera poltica, j que esta est cada vez mais vulnervel partidarizao e jamais deve substituir a ordem moral. Ao tentar essabreve caracterizao do etnlogo orgnico e dos problemas prticos queele est sujeito a enfrentar, quis mostrar que esse etnlogo cada vezmais uma segunda face do etnlogo moderno. Desde que vencida a antigaobsesso pela neutralidade a todo custo, condio ingnua de umaobjetividade ilusria, no h nenhuma razo para que esse etnlogoorgnico no se manifeste em quaisquer de suas atividades, sejam elasacadmicas, de assessoramento no servio pblico ou nas ONGs, sejaonde for. Imagino que seja por essa via que a antropologia e a ticamelhor podem se conciliar. E, nesse sentido, fica como uma sugesto,ou, melhor ainda, como uma idia que espero seja fecunda, o modelodas esferas ticas a micro, a macro e a meso, sendo que ser semprenesta ltima a esfera em que esse etnlogo crtico e reflexivo estarmelhor situado. Penso que aquilo que estou chamando de o mal-estarda tica, poder ser superado na antropologia quando no mais nosescondermos no relativismo absentesta, responsvel por uma neutralidade

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    equvoca, ou, ainda, se quando incorporados como funcionrios orgnicosem instituies particulares ou pblicas, devotadas ao social, nodeixarmos de nos valer da capacidade reflexiva de nossa disciplina e,isso, na proporo em que estejamos abertos para receber os bons influxosda tica discursiva que, mais do que uma teoria, serve-nos como umaestratgia extraordinariamente hbil na mediao do dilogo interculturala que todos ns, por um imperativo de nossa prpria profisso, nopodemos estar ausentes. Sem querer atribuir a esse etnlogo que se devota antropologia prtica, portanto, concentrado nas questes de eticidadee de moralidade, aquela tarefa descomunal que uma vez Edmund Husserl(1976, p. 23) atribuiu ao filsofo como devendo se assumir comofuncionrio da humanidade, dada a sua responsabilidade a respeitodo Ser verdadeiro dessa (mesma) humanidade e Husserl escreveu issos vsperas da segunda Grande Guerra , creio que no seria umaextrapolao exagerada dizer que em termos tico-morais h um certoar de famlia entre ambos: o filsofo funcionrio e o etnlogo orgnico cada um, a seu modo, imersos em suas respectivas responsabilidades.

    1Simpsio Especial sobre Antropologia e tica, realizado no dia 17 de junho de 2002no mbito da 23

    a Reunio Brasileira de Antropologia (Gramado, Rio Grande do Sul).

    2O resultado desse levantamento publiquei em Amrica indgena (1977) e inclui nasegunda edio de meu livro A sociologia do Brasil indgena (1978), como seu dcimosegundo captulo intitulado Possibilidade de uma Antropologia da Ao.

    3Agradeo a Lus R. Cardoso de Oliveira a sugesto para incluir a questo daimparcialidade, distinguindo-a da noo de neutralidade.

    4A alegoria nos incita a dizer, a respeito de qualquer descrio cultural, no istorepresenta ou simboliza aquilo, mas sim essa uma histria (que carrega uma moral)

    Notas

    Referncias

    CLIFFORD, James. A experincia etnogrfica: antropologia eliteratura no sculo XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1988.

    GRUENBAUM, Ellen. The female circumcision controversy: ananthropological perspective. Philadelphia: University PennsyvaniaPress, 2000.

    HUSSERL, Edmund. La crise des sciences europennes et laphnomnologie transcendentale. Paris: Gallimard, 1976.

    LVY-BRUHL, Lucien. La morale et la science des moeurs. Paris:Felix Alcan, 1910.

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    OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A situao atual dos Tapirap.Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi: Antropologia, Belm, n. 3,1959. Nova srie.

    ______. A sociologia do Brasil indgena. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1978.

    ______. Possibilidad de una antropologia de accion entre los Tukuna.America Indigena, Mxico, v. 37, n.1, p.145-169, 1977.

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    PESQUISAS EM VERSUS PESQUISAS COM

    SERES HUMANOS

    Lus R. Cardoso de Oliveira

    De fato, os esforos para a regulamentao de princpios ticos naprtica de pesquisa tm suscitado questes polmicas ainda poucodiscutidas entre ns. Vou procurar tratar de pelo menos trs ou quatroquestes importantes e complexas no campo da tica na antropologiapara dar incio ao debate. Em primeiro lugar, gostaria de dizer que aresoluo 196, instituda pela Comisso de tica em Pesquisa (CONEP)do Ministrio da Sade para regular a tica em pesquisa com sereshumanos em geral, comete alguns equvocos graves. Ao regular toda equalquer pesquisa com seres humanos a resoluo sugere um certoexagero ou uma certa extrapolao de domnios. Neste sentido, me pareceque a resoluo 196 expressa o que gostaria de caracterizar como umcerto reacentrismo ou biocentrismo na viso sobre a tica, comimplicaes muito similares ao que ns na antropologia freqentementenos referimos atravs da noo de etnocentrismo e que um antroplogocomo o Louis Dumont, por exemplo, chama de sciocentrismo parafalar na dificuldade que os ocidentais tm de entender a sociedade decastas na ndia.

    Tal dificuldade se traduz, no caso em pauta, no s em distoresdo ponto de vista cognitivo, mas numa atitude que tambm no deixade ter conseqncias normativas, na medida em que impe(arbitrariamente) uma viso local (biomdica) sobre a prtica de pesqui-sa, ou sobre a tica na prtica de pesquisa, como se fosse universal. Isto, como se representasse, adequadamente, a relao do pesquisador comos sujeitos da pesquisa em todas as reas do conhecimento. Alm derevelar uma m compreenso do carter desta relao nas cincias so-ciais (ou nas humanidades), creio que a imposio do modelo biomdicodesrespeita direitos e, assim, teria implicaes normativas. Uma distin-o central na relao com os sujeitos da pesquisa, invisibilizada peloque estou chamando de reacentrismo, seria a diferena entre pesquisasem seres humanos, como no caso da rea biomdica, e pesquisas comseres humanos, que caracterizaria a situao da antropologia, especial-mente da antropologia social ou cultural, que congrega a grande maioriados pesquisadores no Brasil.

    No caso da pesquisa em seres humanos, a relao com os sujeitos,objeto da pesquisa, tem como paradigma uma situao de interveno,na qual esses seres humanos so colocados na condio de cobaias e, por

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    tratar-se de uma cobaia de tipo diferente, necessrio que esta condiode cobaia seja relativizada. neste contexto que o consentimentoinformado se constitui em uma exigncia no s legtima, mas da maiorimportncia. J no caso da pesquisa com seres humanos, diferentementeda pesquisa em seres humanos, o sujeito da pesquisa deixa a condio decobaia (ou de objeto de interveno) para assumir o papel de ator (oude sujeito de interlocuo). Na antropologia, que tem no trabalho decampo o principal smbolo de suas atividades de pesquisa, o prprioobjeto da pesquisa negociado: tanto no plano da interao com osatores, como no plano da construo ou da definio do problemapesquisado pelo antroplogo.

    Ento, o consentimento informado me parece pouco produtivopara o trabalho do antroplogo. Quando o antroplogo faz a pesquisa decampo ele tem que negociar sua identidade e sua insero na comunidade,fazendo com que sua permanncia no campo e seus dilogos com osatores sejam, por definio, consentidos. Entretanto, o antroplogo sempretem mais de uma identidade no campo. Pois, s um pesquisador comgraves problemas psicolgicos, talvez s mesmo um pervertido dessesque existem apenas no mundo ficcional poderia relacionar-se com osatores apenas como sujeito de conhecimento durante todo o tempo. Umavez no campo, o antroplogo tambm se relaciona com os nativosenquanto ator, e freqentemente participa do modo de vida do grupoestudado ou compartilha experincias com seus interlocutores. Aimplicao disto que, assim como ns temos uma identidade dominantena nossa sociedade, mas s vezes acionamos ou privilegiamos dimensesmenos abrangentes dessa identidade em nossas interaes cotidianas,nas interaes que desenvolvemos no campo tambm assumimos maisde um papel e atualizamos mais de uma identidade. No contexto dassociedades ditas simples, um autor como Max Gluckman falava emrelaes multiplex para caracterizar este padro de interaes que envolvevrios tipos de relacionamentos e de identidades. Neste sentido, oconsentimento informado pouco produtivo para a antropologia porque,do ponto de vista da disciplina, interessante que o antroplogo, nofuturo, possa resgatar pelo menos algumas dimenses de sua experinciaexistencial no campo para a produo de interpretaes e de reflexessobre as quais no havia pensado enquanto fazia a pesquisa em contatodireto com os atores. Deste modo, no possvel nem seria desejvelque o antroplogo pudesse definir ou prever com preciso todos os seusinteresses (presentes e futuros) de pesquisa, no momento recomendadopela resoluo 196 para a obteno do consentimento informado.

    Alis, outro aspecto importante da pesquisa antropolgica que,freqentemente, o objeto terico da pesquisa redefinido aps a pesquisade campo, quando cessa a interao com os sujeitos da pesquisa, o quetraz novas dificuldades para as regras de solicitao do consentimento

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    informado, assim como estabelecidas na resoluo 196 do CONEP. Pois,segundo a resoluo, os sujeitos da pesquisa tm de ser informados noapenas sobre exatamente a que intervenes eles estaro sujeitos, mastambm sobre o assunto ou sobre do que se trata a pesquisa. A satisfaodestes dois aspectos do consentimento informado seria a condio paraa legitimao da pesquisa, assim como para a divulgao de seusresultados.

    Gostaria de chamar ateno aqui para o fato de que, no caso daantropologia, normalmente raro ou pelo menos difcil que o pesquisadortenha uma definio clara e definitiva do seu objeto de pesquisa, oudo problema que ir abordar no livro ou no artigo a ser publicado nofuturo no momento em que ele est tendo a interao com os sujeitosda pesquisa. Gostaria de argumentar ainda que, no s essa ausncia dedefinio precisa, no momento da interao no campo, no tem asimplicaes tico-morais que poderiam caracterizar a situao similarno caso da pesquisa biomdica, mas insistiria que no seria nem mesmodesejvel, do ponto de vista da produo antropolgica, que uma definiobem amarrada e conclusiva fosse formulada no incio da pesquisa. Esteseria ento um primeiro problema para a implementao da resoluo196 no caso da pesquisa antropolgica, e que chama a ateno para aimportncia da diferena entre pesquisas em e pesquisas com sereshumanos. Como mencionei acima, enquanto no plano cognitivo aconcepo do consentimento informado previsto na resoluo impelimitaes mal fundamentadas e ilegtimas investigao doantroplogo ou sua compreenso do objeto, no plano normativo estaslimitaes assumiriam um carter autoritrio, na medida em que noencontrariam o mesmo suporte tico-moral que respalda as exignciasestabelecidas para a pesquisa na rea biomdica. No caso da antropologia,a negociao da pesquisa e/ou do objeto parte constitutiva doempreendimento: primeiro no campo e depois no escritrio quando otrabalho redigido, ainda que no segundo momento trate-se de um dilogosimulado.

    No obstante isso me parece que o antroplogo sedefronta com questes de ordem tico-moral em outras circunstncias,no necessariamente restritas ao momento da negociao da situao depesquisa no campo, junto aos atores. Claro est que o antroplogo sedefronta com problemas tico-morais de base, na medida em que temque estabelecer uma relao dialgica com os sujeitos da pesquisa, e,portanto procurar ouvi-los de fato, no s para que a interao transcorrade maneira adequada, mas tambm para que compreenda bem o queest estudando. Nesse contexto, acho que os problemas tico-morais doantroplogo podem ser particularmente dramticos em dois momentos:a) quando da negociao da identidade do pesquisador no campo, o quepode ser bastante complicado; e b) no momento da divulgao dos

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    resultados da pesquisa, quando o antroplogo no pode se abster daresponsabilidade sobre o contedo do material publicado, assim comosobre as implicaes previsveis de sua divulgao.

    No que concerne negociao da identidade do antroplogo, achoque seria absolutamente legtimo que a ABA e/ou os antroplogos sepreocupassem, por exemplo, com a importncia de o pesquisador noenganar os nativos ou os sujeitos da pesquisa em relao sua prpriaidentidade. H casos registrados na literatura em que pesquisadores narea de cincias sociais, antroplogos ou socilogos, assumem um papelnativo e evitam revelar a sua identidade de pesquisador, o que pode terimplicaes tico-morais graves. H, por exemplo, o estudo famoso deFoote-Whyte (1943) sobre Street Corner Society no qual o pesquisadorassume o papel de participante total para utilizar uma expresso deCicourel (1975) e finge papis para se integrar plenamente ao grupo.Embora no deixe de revelar sua identidade de pesquisador em algunsmomentos, ainda que apresentando seus interesses de pesquisa de formadissimulada (FOOTE-WHYTE, 1975), a estratgia de representar papiscomo se fosse nativo no deixa de ser problemtica, pois motivada paraviabilizar o acesso a informaes que, de outra maneira, provavelmentelhe seriam negadas. Se a idia de participao total e a estratgia defingir papis tinham um apelo inovador em 1937, ano em que a pesquisade Foote-Whyte foi realizada, so de difcil legitimao na atualidade,quando grande a preocupao com os direitos dos sujeitos da pesquisae com a dimenso tica das relaes estabelecidas pelo pesquisador nocampo.

    Entretanto, h outras circunstncias mais complexas, como, porexemplo, no caso da minha prpria pesquisa de campo para tese dedoutorado nos Estados Unidos (OLIVEIRA, 1989), nas quais a assunode uma identidade nativa no parece ter as mesmas implicaes. Durantea pesquisa, procurei combinar a identidade tradicional de antroplogo,em relao qual no fao nenhuma restrio, com a assuno de umaposio social nativa. No primeiro caso, como normalmente se faz,identificava-me como um pesquisador que queria estudar aquelacomunidade e que depois iria escrever sobre ela. Como quer que estaidentificao venha a ser compreendida e interpretada pelos atores, eisso pode variar muito, o interesse em aprender sobre a comuni-dade passa a ser pelo menos uma das dimenses importantes destaidentidade. Por outro lado, devido a meus interesses em questes relativas validade da interpretao antropolgica e s caractersticas do dadoantropolgico, resolvi conduzir uma parte da pesquisa a partir de umaposio social nativa, para estabelecer um outro tipo de relao com osatores, o que me permitiria, em princpio, o acesso a outro tipo de dado.Neste sentido, trabalhei um perodo como conselheiro leigo para pequenascausas um servio prestado por voluntrios a litigantes (reais ou virtuais)

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    atravs do telefone , e atuei tambm, no final da minha pesquisa, comomediador de disputas no Juizado, uma posio exercida por membrosda comunidade tambm em carter voluntrio. Tanto num caso comono outro era sabido que todos os prestadores desses servios tinhamoutra atividade principal, e minha dupla identidade no campo noenvolvia qualquer tentativa de dissimulao.

    Apesar de quase todos os outros mediadores serem estudantes dedireito, esta era uma atividade idealizada para voluntrios leigos, comoeu. No Juizado, estava claro para todo mundo que eu era um estudantede antropologia fazendo uma pesquisa para escrever uma tese dedoutorado e, nesta condio, consegui um espao para no final da pesquisaatuar como mediador de disputas. Antes disso, porm, assisti a muitasdisputas mediadas por mediadores experientes na prestao deste servioao Juizado. Enquanto observador, sempre me identificava comoantroplogo e tinha que pedir permisso s partes para gravar as sessesde mediao, o que nunca me foi negado. Como tinha que utilizar ternoe gravata traje tpico de advogados para no chamar muita atenonem ter que dar muitas explicaes sobre minhas atividades no Juizado,os litigantes tinham dificuldade de acreditar que eu era antroplogoquando me identificava como tal no incio das sesses de mediao e, aofinal, s vezes chegavam a me dizer que sabiam que eu era advogado. Arigor esta no uma situao to excepcional quanto pode parecer, poismuitas vezes o antroplogo tenta comunicar sua identidade da maneiramais fidedigna possvel, mas tem dificuldade de transmiti-laadequadamente, e acaba prevalecendo uma identidade diferente reveliado pesquisador. Naturalmente, este caso no tem as mesmas implicaesticas do primeiro, quando o pesquisador esconde sua identidade deantroplogo para realizar o trabalho e, de certa forma, engana os sujeitosda pesquisa.

    Ainda sobre este tema, gostaria de mencionar um exemplocomplexo e bastante interessante. Penso no caso de uma antroplogafrancesa de origem rabe, chamada Jeanne Favret-Saada (1977), que fezuma pesquisa sobre bruxaria na regio de Bocage na Frana. Favret-Saada vai para Bocage com o objetivo de estudar prticas de bruxaria,sobre as quais at ento s havia relatos impressionistas de folcloristas,mas, aps alguns meses no campo no tinha tido ainda qualquer sinal debruxaria, e quando falava com as pessoas sobre o assunto todos diziam:aqui no existe bruxaria, isso coisa de parisiense achar que nsacreditamos nessas crendices etc. Ela j estava desistindo da pesquisaquando foi confundida com uma pessoa que quebra encantos ou comum desenfeitiador (dsorceleur ou dsenvoteur), um papel ou posiosocial local e, pela primeira vez, exposta s prticas de bruxaria.As antenas se levantaram e ela embarcou na conversa. Quando entendeuque estava sendo identificada como uma pessoa que quebra encan-

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    tos, ela j estava atuando como tal. Isto , como uma desenfeitiadora,e ela acaba assumindo esse papel no campo. Aparentemente passa a seruma desenfeitiadora ou quebradora de encantos com muito prestgiona regio, muito procurada pelos atores e, de fato, ela bem sucedidanessa prtica.

    A experincia de Favret-Saada traz novas questes porque diferentedos dois primeiros casos. Pois, ao mesmo tempo em que ela no est sedisfarando, tambm no est procurando afirmar sua identidade deantroploga, em oposio dessa pessoa que desenfeitia ou que quebraencantos, como foi identificada localmente. Por outro lado, acho que elad todos os indcios de que assume esse papel nativo com todo respeitos prticas culturais locais e levando a srio seus informantes/interlocutores.

    Da minha perspectiva, como problema para nossadiscusso, acho que nesse terceiro caso seria difcil recrimin-la do pontode vista tico-moral, se verdade que, ao assumir essa posio, ela noo faz enganando as pessoas, mas levando-as a srio. Creio que sua atuaodeveria ser vista de maneira mais crtica se, ao assumir a posio dedesenfeitiadora, sua atitude fosse de incredulidade diante de visesde mundo tidas como sem sentido e fruto da ignorncia. Isto , se elapensasse que a populao de Bocage fosse muito ignorante mesmo, paraacreditar em tais loucuras, e que tivesse resolvido dizer duas ou trscrendices para os nativos, fingindo curar as pessoas, apenas para obter asinformaes que lhe interessavam. Mas no foi isso que aconteceu. Poisela no apenas demonstra ter internalizado a prtica de desenfeitiadora,mas atua nela com uma certa competncia.

    De fato, tratar pesquisas com seres humanos como se fossempesquisas em seres humanos representa uma tentativa de colonizao daantropologia ou das humanidades pelo reacentrismo biomdico, o qual,como indiquei h pouco, tem implicaes no s cognitivas mas tambmnormativas. Neste sentido, me parece que os problemas de ordem tico-moral do antroplogo estariam mais presentes no apenas no momentoda definio de sua identidade de pesquisador na medida em que noseria possvel justificar uma identidade disfarada , mas tambm numsegundo momento, quando o pesquisador tem que se preocupar com adivulgao ou com a repercusso dos resultados.1

    Para mencionar rapidamente um caso, gostaria de refletir sobreaspectos da repercusso do livro de Patrick Tierney, jornalista que escreveuum livro contendo acusaes muito graves sobre os trabalhos de pesquisade Neel e Chagnon entre os Yanomami. A professora Alcida Ramos,minha colega na Universidade de Braslia e renomada por suas publicaessobre os Yanomami, acaba de fazer uma resenha sobre o livro para arevista Current Anthropology (TIERNEY, 2001), na qual refora algumas

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    acusaes e no deixa de criticar o prprio Tierney. Tomando apenasum ponto enfatizado por Alcida em sua resenha, mas que diz respeitodireto ao que ns estamos discutindo aqui, ela aponta problemas sriossobre a falta de responsabilidade de Chagnon em relao aos resultadosde suas pesquisas. Chagnon desenvolve uma teoria sobre os Yanomamina qual acentua muito a importncia das brigas internas e do carterviolento do grupo, onde as pessoas se matariam com freqncia,construindo uma viso extica dos Yanomami, caracterizado por elecomo The fierce people ou O povo feroz, idia que d ttulo a suamonografia. Ainda que Alcida faa crticas bem fundamentadas aesta viso, gostaria de deixar de lado, no momento, a discusso sobrea validade desta interpretao do ponto de vista cognitivo, para enfocaro problema da (falta de) responsabilidade de Chagnon sobre a utilizaode sua interpretao. Apesar de ter trabalhado com os Yanomami daVenezuela, a interpretao do Chagnon foi utilizada aqui, no Brasil,durante as discusses sobre a demarcao da terra Yanomami. Isto , foiutilizada por aqueles que defendiam que a terra dos Yanomami fossedistribuda em ilhas, com o argumento, inspirado no trabalho de Chagnon,de que a distribuio dos Yanomami em ilhas seria, inclusive, uma manei-ra de proteg-los contra eles mesmos, porque tratar-se-ia de um povoque quando se junta se mata! Parece-me que, mesmo mantendo umaconvico inabalada sobre sua interpretao original do grupo comopovo feroz, Chagnon poderia ter vindo a pblico manifestar seu eventualrepdio manipulao de suas idias por autoridades e grupos de interessecom o objetivo de reduzir a rea Yanomami. Como se sabe, Chagnonnunca se mobilizou para atacar o problema, e creio que tal (falta de)atitude poderia ser legitimamente cobrada dele com base em princpiosticos que norteiam a relao entre pesquisador e sujeitos pesquisadosna antropologia (veja resenha de Ramos). O exemplo interessanteporque traz tona uma dimenso da responsabilidade tica do antroplogocuja importncia ou implicaes s aparecem ps-fato, depois da pesquisafeita e de seus resultados divulgados, e passa ao largo das preocupaes/diretrizes definidas na resoluo 196 do CONEP.

    Outra questo da maior importncia e bastante complexa, no queconcerne ao trabalho do antroplogo, so os laudos. claro que noteria possibilidades de abordar aqui todas as implicaes de ordem ticaenvolvidas na produo dos laudos. No s porque no haveria tempo,mas porque trata-se de uma experincia relativamente recente, cujacomplexidade parece ainda no ter vindo inteiramente tona, visto quequanto mais se fala sobre o que est envolvido nos laudos, maiores soos problemas associados a eles.

    Gostaria de comear chamando a ateno para uma dificuldade aqual parece estar cada vez mais presente com a acelerao do processode institucionalizao e generalizao dos laudos, mas que no tem

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    recebido a ateno que merece em nossa comunidade. Trata-se dadificuldade que os antroplogos tm demonstrado para lidar com a idiado contra-laudo. Idia cuja contestao no encontra muita receptividadeem ambientes democrticos ou onde as ideologias da democracia e doindividualismo so dominantes. Pois no fcil dissociar a negaodo contra-laudo da percepo de negao de um direito bsico decidadania. Por outro lado, acho tambm que negar o contra-laudo temimplicaes negativas para o prprio status cognitivo do laudo doantroplogo, porque no h como justificar um laudo que no possaestar sujeito a questionamentos, ou que possa ser identificado como umato partidrio, quem sabe mesmo passional, diriam alguns, em relao populao indgena. Do ponto de vista do judicirio, que solicita e/ouque avalia os laudos para tomar decises sobre direitos, a efetividade dolaudo antropolgico est no seu carter tcnico-cientfico, na medidaem que pretende traduzir melhor a realidade que est sendo tematizadano caso examinado pelo juiz. Se o antroplogo abre mo da defesa dessadimenso, ele perde a sua fora argumentativa no contexto jurdico, quese orienta exatamente por essa preocupao. Neste quadro, tal atitudepode ser absolutamente fatal. Acho muito difcil a ABA tomar uma posioque no seja favorvel possibilidade de confrontao de laudos e, aomesmo tempo, defender a observao ou respeito aos laudos que temapoiado. Naturalmente, tomar uma posio favorvel possibilidade deeventual realizao de um contra-laudo, no significa abrir mo da crticaaos laudos escusos, como no exemplo do antroplogo que vai trabalharpara o fazendeiro, ganhando rios de dinheiro, e maqueia o laudo paraatender aos interesses esprios do fazendeiro. Pelo contrrio, apossibilidade de contestar laudos pode se constituir num importanteinstrumento de defesa dos interesses das populaes estudadas porantroplogos.

    Nesta linha, possvel tematizar este dilogo com o direito,associado ao exemplo da relao entre os papis de antroplogo e deadvogado. Tendo como referncia a viso da relao entre o advogado eo cliente nos Estados Unidos, seria importante trazer luz, em primeirolugar, o fato de que essa relao na qual o advogado deve utilizar todosos instrumentos jurdicos ao seu alcance para que seu cliente ganhe acausa plenamente justificvel do ponto de vista tico-moral no contextoamericano. Pois, trata-se de um sistema jurdico adversarial onde asustentao moral que legitima a defesa do direito de todos os envolvidosdepende de os advogados das duas partes atuarem da melhor maneirapossvel para defender os interesses especficos dos seus clientes. Nestecontexto, em tese, os advogados vo estar fazendo isso sob o controle dojuiz, que dever coibir os eventuais abusos de parte a parte, freqente-mente a partir das objees suscitadas pelo oponente daquele que tem apalavra no momento. J vimos muitos filmes sobre o sistema jurdicoamericano, o qual provavelmente por isto conhecemos melhor que o

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    brasileiro, e fcil lembrar que os advogados sempre esto solicitando ainterveno do juiz para inibir excessos nas perguntas ou comentriosque seus oponentes dirigem s testemunhas quando estas esto depondo.Ento, h uma justificativa tico-moral para defender e enfatizar aimportncia do empenho do advogado na sustentao do ponto de vistade seu cliente. Pois a outra parte ter os mesmos direitos na apresen-tao de seu ponto de vista, ou do contra-laudo nos termos de nossadiscusso.

    Para finalizar, queria chamar ateno para um aspecto presenteem todo e qualquer laudo antropolgico, e no apenas naqueles queenvolvem a delimitao de terra indgena ou de quilombo, o qual dizrespeito dimenso tcnico-cientfica do laudo, que no pode deixar deter compromissos com a elucidao da verdade dos fatos que examina.Na mesma direo, assim como h uma dimenso tico-cientfica e outratico-jurdica na elaborao ou na confrontao de laudos, tambm huma dimenso tico-poltica que ainda no tive oportunidade de abordar.Devemos ter clareza que uma dimenso no se esgota na outra e que,por exemplo, questes de cunho poltico no podem ser adequadamenteresolvidas de forma tcnica, ainda que esta possa se constituir num subsdioimportante para aquela. H vrias circunstncias em que no seria legtimoao tcnico, ao advogado ou ao antroplogo tomar decises que possampassar por cima dos interesses e da viso dos concernidos, isto , daquelesque esto envolvidos nos processos sociais em pauta e que arcaro comas conseqncias da deciso que vier a ser tomada. Pois, ainda que umcientista qualquer possa ter boas razes para achar que uma determinadaopo melhor para aquela populao, porque, para dar um exemploradical, viabilizaria uma ampliao da expectativa de vida do grupo,esta pode no ter a preferncia da comunidade, que se sente mais atradapor opes que no permitiro o mesmo patamar de longevidade. Se acomunidade achar que pode viver mais feliz com a outra opo, serialegtimo que a viso cientfica se impusesse para que as pessoas pudessemviver mais tempo?2

    Esta dimenso tico-poltica, que tambm est sempre presenteno trabalho do antroplogo, legitimaria a perspectiva que eu gostaria deidentificar aqui como de assessor ou de assessoria, em oposio perspectiva do porta-voz, que pretende falar em nome do grupo. Comexceo de casos muito circunscritos e pontuais, onde o antroplogotem boas razes para dizer que aqueles que vo sofrer uma determinadaao como as populaes indgenas em muitas circunstncias(especialmente no passado) no tem condies de se manifestar ou deentender as conseqncias dos processos a que esto submetidos, muitodifcil sustentar a posio de porta-voz. Mas, como um padro, seriaabsolutamente inadequado ao antroplogo assumir o lugar do ator e/oudo grupo que est assessorando e dizer o que deve ser feito. Um ltimo

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    ponto, diz respeito idia de uma antropologia de compromisso, ou deuma antropologia engajada, que sempre teve um espao entre ns, masque tem aparecido e com muita nfase nos Estados Unidos de algunsanos para c. Queria s manifestar aqui que no tenho nenhuma simpatiapelo que alguns autores como Nancy Scheper-Hughes (1995), antroplogaamericana, tem definido como antropologia militante. Pois, trata-se deum tipo de militncia que me parece ter implicaes tico-normativasnegativas, na medida em que sugere uma atitude excessivamente seletivaem relao ao ponto de vista nativo, que se transforma em um apndicedas boas idias e solues apresentadas pelo antroplogo iluminado.

    Em relao questo da neutralidade, acho que, inclusive porcausa desse dilogo com o judicirio, mas no s por causa dele,deveramos fazer uma diferena entre neutralidade e imparcialidade.Clifford Geertz (1983) tem um artigo, que provavelmente a maior partede vocs j leu, com o ttulo Do ponto de vista dos nativos, o qual introduzido com uma frase que serve de mote para o argumento alidesenvolvido: o que acontece com verstehen (a compreenso) quandoeinfhlen (a empatia) desaparece. A questo motivada pela reao publicao dos dirios de Malinowski (1967/1989), editadospostumamente, quando descobre-se que Malinowski pensava coisasincrveis dos nativos, e que dizia cobras e lagartos sobre eles. Nestecontexto, cai por terra o mito da integrao absoluta do antroplogo nacomunidade estudada e do acesso direto ao ponto de vista nativo atravsda empatia. Geertz ento argumenta que o acesso direto ou neutro aoponto de vista nativo invivel, pois o antroplogo no pode se absterde suas pr-concepes, e que a compreenso se daria atravs daarticulao entre conceitos distantes (os dos nativos) e conceitos prximos(os do antroplogo). Isto , o acesso ao ponto de vista nativo dependeriada mediao das representaes do antroplogo na medida em que estasviabilizassem conexes elucidativas com as noes (conceitos distantes)dos nativos.

    Agora, a impossibilidade de realizar uma interpretao neutrano significa que o antroplogo tenha que abrir mo de pretenses devalidade e/ou da preocupao com a imparcialidade de suas interpretaes.Tanto no caso da dimenso estritamente cognitiva da interpretao, comoem relao s suas implicaes normativas e aqui retomamos o dilogocom o judicirio parece-me que a pretenso de imparcialidade podeser resgatada. Isto , se a neutralidade invivel porque o antroplogono pode abrir mo de sua condio de ator, a imparcialidade pode servislumbrada desde que o pesquisador se preocupe em se expor s diversasverses dos fatos a serem interpretados, e no tome posies que nopossa defender argumentativamente. Se tal procedimento no garanteinterpretaes definitivas ou absolutas, pelo menos exclui aquelas queseriam arbitrrias. No contexto do dilogo com o judicirio a questo

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    da imparcialidade importante porque exclui a possibilidade delegitimao de interpretaes ou de verses unilaterais. Assim, se o laudoantropolgico um parecer tcnico, este se desqualificaria como tal ses pudesse ser articulado na defesa dos interesses de um determinadogrupo ou segmento social, independentemente de qualquer dado ouargumento. Seria difcil para a ABA justificar que seus associados nodeveriam, por princpio, fazer laudos para certos segmentos sociais, cujainsero na sociedade mais ampla no pudesse ser co


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